Artigo retirado de:
http://www.felinus.org/index.php?area=artigo&action=show&id=904
Autor:
catw (Carla Mar) [ Europe/Lisbon ] 2006/07/06 19:08

Um dia dancei com o meu cão

O meu cão tem 11 anos. Ofereceram-mo no dia do meu 23º aniversário. O seu nome é Spooky.

Foi baptizado assim em honra do filme “A máscara” com Jim Carrey. Cada vez que o personagem dele se transformava e dizia : “Spooky!”, eu soltava sonoras gargalhadas, e foi mesmo sem saber na altura o que a palavra significava, que baptizei o meu cão. Adorava o som que saia da boca do actor, a forma como ele o dizia, o exuberante personagem verde de chapéu amarelo em que ele se transformava, a dança que fazia com aquelas coisas barulhentas na mão. Tchi-tchi-kibum, tchi-tchi-kibum, tchi-tchi-kibum!

Certa vez, ao som dessa música do filme dancei com o meu cão. É verdade. Pus o som alto, sai para a varanda de casa dos meus pais, levantei-lhe as patas da frente que apoiei nos meus ombros e dancei com ele. Muitas vezes revejo aquela cena, aquele focinho negro espantado e os olhos brilhantes de quem adora uma boa brincadeira. E a minha mãe a dizer :”Deixa o cão em paz, que o pões doido! Aí que maluca és valha-me Deus!”.

Agora aqueles lindos olhos, castanhos, brilhantes, esses olhos estão enevoados. As cataratas instalaram-se e talvez tenha chegado a hora de os deixar partir. Cada vez que olho para ele, para o olhar perdido, o andar meio trôpego, é isso que penso:”Chegou ou não a hora de te deixar partir, cão? Tens de me dizer… Não quero que sofras, não quero prolongar-te o sofrimento por ignorância ou egoísmo.” E vou dizendo para mim a palavra “eutanásia”, “eutanásia”, a ver se me habituo a ela. A ver se o hábito diminui a dor.

O meu cão tinha um olhar feliz. Eu sei. Já vi animais maltratados, aterrorizados, angustiados, encolhidos com medo duma mão que se estende para dar uma festa. O meu cão nunca se encolheu com uma mão estendida. É um animal confiante. Sabe que atrás da mão vem uma festa, uma escovadela no pêlo longo, uma carícia no focinho, uma palmada no peito, uma coçadela debaixo das orelhas mesmo como ele gosta.

O meu cão sabe. E é por isso que me custa ser agora eu a mão dos remédios, das injecções. Mesmo assim hoje apoiou a pata em cima da minha perna, só para me tocar e ficou quietinho enquanto lhe injectava a cortisona.

Hoje parece-me que os 11 anos com ele passaram demasiado rápido, que precisávamos de um bocadinho mais de tempo. Tempo para as corridas, para o salto ao eixo. Essa era a brincadeira preferida dele, passar por baixo das minhas pernas, fintar-me, ladrar a desafiar-me; o focinho quase colado ao chão, patas traseiras esticadas, o corpo posicionado como a rampa de lançamento de um foguetão.

Não era fácil pular por cima de 45kg de cão, mas eu nunca resistia à brincadeira e ele sabia. Difícil era convencê-lo a deixar-me trocar a roupa do trabalho pelo fato de treino. Ficava a chorar à porta, a reclamar até eu voltar para a nossa festa. Parecia que ele achava que aquele tempo em que eu desaparecia para trocar de fato, aquele tempo era precioso demais para nós. Era menos tempo de brincadeira, menos tempo com ele.

O meu cão envelheceu de repente. Um pouco à bruta, desajeitadamente, como quando entrava na sala e encalhava na mobília, confrontou-me com a verdade. Um dia sei que vou ter de o deixar partir. Sei também que esse dia se aproxima. E eu não queria, e apetece-me fazer como os putos mimados no supermercado: atirar-me para o chão, berrar, estrebuchar e dizer que não quero. Ouviste Pai?... Não quero!... E podia ser que com uma birra bem grande me deixassem ficar com o meu amigo, com o meu cão… Podia ser que as horas parassem e os dias não passassem e eu pudesse ficar com ele só mais um bocadinho, só o suficiente para mais uma dança de brincadeira, uma dança que durasse a eternidade…