Artigo retirado de:
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Autor:
clauporto (Claudia Porto) [ Europe/Lisbon ] 2004/03/21 12:48

Em Algum Lugar

Whisky, um simpático gatinho preto e branco, olhava desconsolado para o amigo que tinha acabado de partir. Um último olhar para sua dona e ele se fora, partira para muito, muito longe. Whisky esperava que ele estivesse bem em algum lugar, onde quer que fosse.

Não se lembrava muito bem dele, era estranho, mas era verdade. Não conseguia se lembrar como tinha chegado, sabia apenas que tinha partido, muito rápido e sem maiores explicações. Whisky entretanto não conseguia se lembrar muito mais que isso. Apenas olhava para o pobre animalzinho deitado sobre a cama de sua dona e suspirava de dó ao ver o sofrimento dela.

Sua dona tão amada, que era sempre tão alegre e vivia brincando com ele, naquele momento parecia feita somente de lágrimas. Whisky sentia uma dor profunda por saber que nada poderia fazer para aliviar o sofrimento dela. Depois de ficar por ali sentado, contemplando aquela cena, resolveu que faria melhor se os deixasse a sós, e perambulou pela porta, em direção ao quintal.

Havia no quintal uma árvore enorme, e o gato costumava passar horas ali, pendurado entre os galhos, observando o movimento das folhas que caíam ou os passarinhos que vinham a toda hora catar sementinhas no chão. Mas naquele dia, estranhamente, tudo parecia estar congelado. Não havia pássaros, não havia folhas caindo, não havia nada a não ser uma criança pequenina sentada na grama, com o rosto cheio de lágrimas.

Whisky, curioso, aproximou-se dela, e foi tomado de uma enorme compaixão por aquela criaturinha tão pequena. Sentou-se ao seu lado, sentindo seu calor, e ela imediatamente voltou-se para ele, os doces olhos castanhos transformados em poças de onde escorriam as lágrimas quentes.

A criança passou a soluçar ainda mais alto, e de repente Whisky reconheceu nela sua dona, mas como isso seria possível? O gato tinha absoluta certeza de que o tempo jamais poderia voltar atrás. Como era possível que sua dona estivesse ali ao lado dele, tão jovem, e ao mesmo tempo estivesse deitada na cama chorando por seu amigo gato? Whisky não conseguia compreender, mas talvez houvessem no mundo coisas totalmente incompreensíveis, como a maldade de algumas pessoas. Whisky realmente não sabia. Mas via a menina banhada em lágrimas e isso era tudo o que lhe importava naquele momento.

Encostou seu corpo ronronante nas costas da criança, tentando consolá-la. A menina continuava chorando, e chegando mais perto Whisky viu que tinha nas mãos um hamster pequenino, aparentemente tão morto quanto seu amigo gato estaria no quarto, muitos anos mais tarde. Então era por isso que chorava ! Por isso tanta tristeza... Para onde iria aquele ratinho? Estaria em algum lugar?

De repente, suas perguntas pareceram estar prestes a serem respondidas. Whisky sentiu um vento suave em suas costas, e, voltando-se, viu uma mulher de longos cabelos, envolta em uma luz difusa. A luz era tão brilhante e envolvia seu corpo de forma tão natural que Whisky soube imediatamente que era um anjo. Um anjo... Teria vindo buscar o pequenino ? A resposta, evidentemente, era sim. Whisky presenciou maravilhado o corpo do hamster se erguer na palma da mão da criança que chorava, e repentinamente voltar à vida. Ao menos foi isso o que pensou naquele momento. Entretanto, não tardou a perceber que tinha se enganado, ao olhar novamente para aquela mãozinha e ver que o bichinho continuava no mesmo lugar. Mas como?! O hamster também estava com o anjo, estava vivo em suas mãos...

Era tudo muito difícil para Whisky compreender. Olhou para o anjo, que até então não dava mostras de ter percebido sua presença. O anjo olhou para o gato e, com um aceno, convidou-o a segui-lo. Whisky sentiu um bocado de medo, mas a calma que irradiava daquela figura angelical era tão grande, que resolveu arriscar e foi.

Andaram lado a lado por algum tempo, até chegar a uma enorme casa, cercada de um jardim com flores coloridas nos canteiros, e uma grande árvore no meio do quintal. Uma casa muito parecida com a sua, na verdade, mas por outro lado muito diferente. Havia alguns animais no quintal, e qual não foi a surpresa de Whisky ao ver que reconhecia alguns deles, pelas fotos guardadas no fundo do armário de sua dona. O que estariam fazendo ali? O anjo apontou para um canto da sala, e Whisky pode perceber que havia uma cadeira de balanço, onde estava sentada uma velha senhora, com um redondo gato deitado no colo. A velhinha parecia-se muito com sua dona também, e Whisky repentinamente sentiu-se muito confuso.

Nesse momento, uma grande lufada de vento atingiu seus bigodes, virando-os para trás. O vento soprou com tal intensidade que Whisky pensou estar de repente no olho de um furacão. Passando tão rápido como veio, o vento se foi sem deixar vestígios, deixando Whisky ainda mais confuso. Olhando em volta, viu que havia mais animais naquela sala. Não se lembrava de ter visto o aquário enorme contra a parede, com seus peixes coloridos. Não se lembrava do cachorrinho peludo que brincava com uma bolinha pelo corredor, apesar de lembrar-se de já tê-lo visto em algum lugar. Estranho...

De repente, deu-se conta do que estava vendo. De repente, deu-se conta de tudo o que estava acontecendo... Estava mesmo na casa de sua dona. Estava em sua própria casa. Ou no que parecia ser uma versão mais alegre e leve dela, uma versão onde não havia sofrimento, onde não havia dor – uma versão onde não havia lágrimas.

O vento novamente soprou com toda a sua força, e Whisky viu-se novamente transportado para o quarto onde sua dona debruçava-se sobre a cama, abraçada ao corpo pequenino e peludo do gato que partira. Whisky aproximou-se dela, movido pela vontade de lhe contar de alguma forma o que tinha visto, para lhe dizer que não chorasse mais, porque o gatinho, assim como o hamster, jamais morreria, mas sim estaria esperando por ela naquela casa tão alegre e cheia de vida, que o gatinho brincaria em meio as flores e saltaria feliz nos galhos da árvore, que teria muitos amigos e viveria para sempre.

Mas ao saltar para a cama, Whisky ficou paralisado pelo choque. Olhando para o amigo morto nos braços de sua dona, Whisky constatou finalmente que na verdade não havia amigo nenhum. Por isso não se lembrava de sua chegada, apenas de sua partida! O corpo em seus braços era o do próprio Whisky, e era por ele que ela chorava...

A porta do quarto se abriu com uma lufada de vento, e o anjo apareceu na soleira, com sua luminosidade suave irradiando ternura. Whisky olhou para ele com os olhos cheios de dúvida, e olhou para sua dona. Novamente olhou para o anjo, e ficou surpreso ao ver que este lhe fazia um sinal de consentimento.

Whisky aproximou-se do rosto banhado em lágrimas de sua dona, e deu-lhe uma lambida carinhosa. Olhou em seus olhos e viu como eles se iluminavam com aquele pequeno gesto. Viu que ela havia sentido sua presença, e com seu coração aos pulos, Whisky soube que ela entenderia o recado. Podia partir em paz. Estariam juntos novamente, um dia... Em algum lugar.