Artigo retirado de:
http://www.felinus.org/index.php?area=artigo&action=show&id=106
Autor:
Filipa Bastos (Filipa Bastos) [ Europe/Lisbon ] 2004/01/29 22:26

O Gato Zen

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O Homem estava muito triste. Sabia que os dias do Gato estavam contados. O médico tinha dito que não havia mais nada a fazer, que ele deveria levar o Gato para casa e deixá-lo o mais confortável possível.

O Homem acariciou o Gato no seu colo e suspirou. O Gato abriu os olhos, ronronou e olhou para o Homem. Uma lágrima escorreu pela face do Homem e caiu na testa do Gato. O Gato deitou-lhe um olhar ligeiramente irritado.

"Porque é que choras, Homem?", perguntou. "Porque não suportas a ideia de perder-me? Porque achas que nunca vais poder substituir-me?"

O Homem fez que sim com a cabeça.

"E para onde achas que irei quando te deixar?" perguntou o Gato.

O Homem encolheu os ombros, sem saber o que dizer.

"Fecha os olhos, Homem", disse o Gato. O Homem o olhou sem entender bem, mas obedeceu.

"De que cor são os meus olhos, o meu pêlo?" perguntou o Gato.

"Os olhos são dourados e o pêlo é castanho, um castanho intenso e vivo" respondeu o Homem.

"E em que parte do corpo tenho pêlos mais escuros?" perguntou o Gato.

"Nas costas, no rabo, nas pernas, no nariz e nas orelhas", disse o Homem.

"E em que lugares costumas ver-me mais?" perguntou o Gato.

"Eu vejo-te... no parapeito da janela da cozinha, observando os passarinhos... na minha cadeira preferida... na escrivaninha, deitado em cima dos papéis de que eu preciso... no travesseiro ao meu lado, à noite".

O Gato concordou.

"Tu consegues ver-me em todos esses lugares agora, mesmo de olhos fechados?" perguntou.

"Claro. Vi-te neles durante muitos anos" respondeu o Homem.

"Então, sempre que quiseres ver-me, tudo o que precisas fazer é fechar os olhos" disse o Gato.

"Mas tu não vais estar lá de verdade" respondeu o Homem com tristeza.

"Ah, sim?" disse o gato. "Pega naquele cordel que está no chão - ali, o meu 'brinquedo'.

O Homem abriu os olhos, esticou o braço e pegou no cordel. Tinha uns 60 centímetros e o Gato conseguia divertir-se com ele durante horas e horas.

"De que é feito o cordel?", perguntou o Gato.

"Julgo que é de algodão", disse o Homem.

"Que vem de uma planta?" perguntou o Gato.

"Sim" disse o Homem.

"De uma só planta ou de muitas?"

"De muitos algodoeiros", respondeu o Homem.

"E seria possível que outras plantas e flores nascessem no mesmo solo do algodoeiro? Uma rosa poderia nascer ao lado do algodão, não?" perguntou o Gato.

"Sim, acho que seria possível" disse o Homem.

"E todas as plantas se alimentariam do mesmo solo e da mesma chuva, não é?", perguntou o Gato.

"Sim" disse o Homem.

"Então todas as plantas, a rosa e o algodão, seriam muito parecidas por dentro, mesmo aparentando ser muito diferentes por fora" disse o Gato.

O Homem concordou com a cabeça, mas não conseguia entender o que aquilo tinha a ver com a situação.

"E então, aquele cordel" disse o Gato, "é o único cordel do mundo feito de algodão?"

"Não, claro que não" disse o Homem "foi tirado de um rolo de cordel".

"E sabes onde estão todos os outros pedaços de cordel, e todos os outros rolos?", perguntou o Gato.

"Não, não sei... seria impossível saber", disse o Homem.

"Mas mesmo sem saber onde estão, acreditas que eles existem. E mesmo que alguns pedaços de cordel estejam contigo e outros estejam noutros lugares... mesmo que alguns sejam curtos e outros sejam compridos e mesmo que o teu rolo de cordel não seja o único no mundo... concordas que há uma relação entre todos os cordéis?" perguntou o Gato.

"Nunca tinha pensado nisso, mas acho que sim, há uma relação" disse o Homem.

"O que aconteceria se um pedaço de cordel caísse no chão?" perguntou o Gato.

"Bom... ele acabaria por ser enterrado e por decompor-se na terra" disse o Homem.

"Sim" disse o Gato. "E talvez nesse sítio nascesse mais algodão, ou uma rosa".

"Talvez" concordou o Homem.

"Queres dizer que a rosa no parapeito da janela pode ter alguma relação com o cordel que tens na mão e também com todos os cordéis que nunca viste", disse o Gato.

O Homem franziu a testa, pensando.

"Agora pega numa ponta do cordel em cada mão" pediu o Gato.

O Homem fez o que era indicado.

"A ponta na mão esquerda é o meu nascimento e a na mão direita é a minha morte. Agora une as duas pontas" disse o Gato.

O Homem obedeceu.

"Acabaste de formar um círculo contínuo" disse o Gato. "Alguma parte do cordel parece ser diferente, melhor ou pior do que qualquer outra parte dele?"

O Homem examinou o cordel e acenou que não com a cabeça.

"O espaço dentro do círculo parece diferente do espaço fora dele?", perguntou o Gato.

De novo, o Homem fez que não com a cabeça, mas ainda não sabia se estava a compreender onde o Gato queria chegar.

"Fecha os olhos de novo" disse o Gato. "Agora lambe a tua mão".

O Homem arregalou os olhos, surpreendido.

"Faz o que eu te digo", disse o Gato. "Lambe a tua mão, pensa em mim em todos os meus lugares preferidos, pensa em todos os pedaços de cordel, pensa no algodão e na rosa, pensa em como o interior do círculo não é diferente do exterior".

O Homem sentiu-se ridículo a lamber a mão, mas obedeceu. Ele descobriu o que um gato deve saber, que lamber uma pata é muito relaxante, e ajuda a pensar mais claramente. Continuou a lamber, e os cantos da boca começaram a esboçar o primeiro sorriso que ele dava em muitos dias. Esperou que o Gato o mandasse parar mas, como este não mandou, abriu os olhos. Os olhos do Gato estavam fechados. O Homem acariciou o pêlo castanho, quente, mas o Gato tinha morrido.

O Homem cerrou os olhos com força e as lágrimas começaram a escorrer-lhe cara abaixo.

Viu o Gato no parapeito da janela, na cama, deitado em cima dos papéis importantes. Viu-o no travesseiro ao seu lado, viu os olhos dourados brilhantes, e o castanho mais escuro no nariz e nas orelhas. Abriu os olhos e, por entre as lágrimas, olhou para a rosa que crescia num vaso à janela, e depois para o cordel que ainda segurava apertado na mão.

Um dia, não muito depois, tinha um novo Gato no colo. Era uma linda gata malhada... tão diferente do seu querido Gato anterior mas, ao mesmo tempo, tão parecida.




Tradução do brasileiro por Elizabete Feitoria, com base na tradução do original por Daniela Travaglini