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Uma gatinha branca

Cecília Meireles
Ao escurecer, os garotos estavam sentados à beira da calçada, com um certo ar de remorso. Um deles, com uma varinha na mão, revolvia o pêlo branco da gatinha, deitada de flanco, muito triste, com uma expressão de criatura humana. Por baixo do pêlo espesso, via-se-lhe a pele do ventre, ainda clara e um pouco flácida. Estavam calados e um pouco pensativos. Alguns olhavam para a morte pela primeira vez.

As meninas haviam protestado em vão. Os garotos riam-se delas. Por fim, fugiram para casa, fizeram queixa às mães, esconderam a cabeça nos braços e choraram.

Tudo começara dias atrás, quando a bela gatinha branca fizera a sua aparição no alto da rua. Não se sabia de onde vinha, se tinha donos, por que passava por ali. As meninas encantaram-se com ela. Tão macia! Tão vagarosa! Parava. Olhava. Quase se imaginava que sorria. Depois continuava o seu caminho. O que via, quem pode saber? Parecia uma princezinha das histórias encantadas, toda vestida de arminho, a passear pelo seu reino de flores. Caminhava sobre as folhas secas com tal brandura que não deixava ruído. Entrava pela sombra como nuvem branca em nuvem cinzenta. Seus passos de seda ensurdeciam nas pedras, no cimento, nos tijolos dos muros. Ela mesma, quando parava, parecia procurar-se no seu silêncio, redondo como uma circunferência. Se às vezes elevava um ténue miado, era como um vago bocejo.

Por todos esses motivos, as meninas a amavam e queriam acariciá-la. As mães diziam que era gata de raça; toda branca, toda branca e de olhos vagamente azuis, como duas flores molhadas de orvalho. Mas ao chegarem perto dela, as meninas ficavam um pouco inibidas. Podiam ser arranhadas; pois até onde iria a sua brandura? Ela poderia, também, fugir... Assim, aproximavam-se de mansinho, fazendo psi-psi-psi, com medo de assustá-la. Mas a gatinha não se assustava: detinha-se, ao mesmo tempo curiosa e alheia, esperava delicadamente, e só mesmo quando alguma das meninas se abaixava, para tomá-la nos braços, encolhia-se, toda em pelúcia, e procurava escapar, mas sem nenhuma agressividade. Por duas ou três vezes conseguiram acariciar-lhe a cabeça e viram de perto como eram luminosos os seus olhos, róseo e cetinoso o seu breve focinho e, as suas orelhas, aveludadas. Ofereciam-lhe pedacinhos de pão-de-ló, biscoitos, que ela apanhava no ar, com multa suavidade. E depois desaparecia, mergulhando nas sebes floridas, atravessando cercas e grades, por sucessivos jardins e quintais.

Mas, enquanto as meninas assim a acompanhavam, com olhares maternais, e procuravam todos os dias descobrir de onde vinha, a quem pertencia, e se teria filhotes (pois só pelos seus modos se via que era uma gatinha), os garotos dispunham-se para uma acção de guerra, aparelhando-se com pedras e estilingues para a destroçarem. Quando as meninas souberam disso, protestaram, ameaçaram, as irmãs foram contra os irmãos, arrancaram-lhes as malvadas armas, acusaram-nos na escola e em casa, mas os rapazes apenas baixavam os olhos, talvez para não se descobrir neles o propósito formal do sonhado crime.

Como o crime aconteceu, as meninas não viram. Viram apenas a gatinha morta, com o focinho rebentado e manchas feias no alvo pêlo, tão longo, tão sedoso, tão fofo. Gata de raça? tinham ouvido dizer dos mais velhos. Não quiseram ver mais nada. Fugiram para as suas casas, cheias de lágrimas, desesperadas, agarraram-se às mães, sacudindo-as, como na esperança de que elas pudessem ressuscitar a gatinha branca. As mães chegaram às janelas, nos portões, mas não viram nada, porque a gatinha estava do outro lado, depois da esquina. Comentaram, porém, tamanha maldade. Quem fizera aquilo? Por quê? POR QUÊ? As meninas desabafavam-se em explicações de defesa: uma gatinha tão bonita, tão mansa, que nunca arranhou ninguém, que não roubava nada, nem miava, nem fazia barulho... Aparecia, passava, não entrava em casa nenhuma... E de raça! De olhos azuis, toda branca! Teria sido por isso mesmo que a mataram? Por ser diferente? Não fizeram nada aos gatos que se atiravam aos cestos dos peixeiros e aos embrulhos dos açougueiros, sujos, arrepiados, vorazes, com miados ensurdecedores! Ah!

Por muito tempo as meninas ficaram de mal com os meninos e nem se atreviam a perguntar-lhes por que tinham matado a gatinha. POR QUÊ? Os meninos não fizeram caso dessa zanga. Passavam ufanos, de cabeça levantada, numa demonstração de força bastante insolente, como se bradassem: "Somos homens! Fazemos o que queremos! Já sabemos até matar!" As meninas entendiam.

Isso, porém, foi depois. Naquela tarde, os garotos, sentados à beira da calçada, contemplavam a sua obra, que era aquela incompreensível destruição. Uma gatinha de raça. Toda branca, sem mancha alguma. Tão gentil! Com aqueles modos tão finos! Sem molestar jamais ninguém! Como nascera aquele ódio? Como se formara aquele crime? Estavam sentados à beira da calçada, mergulhados num mutismo bruto, como se todos fossem um só, numa cumplicidade obscura. E a noção da sua perversidade devia pesar-lhes no coração como uma grande pedra negra.

(Um deles, como para distrair-se, mexia com uma varinha no pêlo branco da gatinha morta. E de certo modo parecia que automaticamente a acariciava.)



Autor: Cecília Meireles
Extraído da obra "Ilusões do mundo", Editora Nova Fronteira

- anims (Guilhermina Abreu) [ Europe/Lisbon ] 2005/06/13 17:38

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» hecep ( Helena Cepeda) » [ Europe/Lisbon ] 2005/06/13 18:27
Infelizmente uma boa descrição de muita da realidade. Vieram-me as lágrimas aos olhos.
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