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A verdadeira origem da chuva

Fora um dia cansativo!... Ana estava de rastos. Distribuira ração e medicamentos pela extensa população de 4 patas da casa, como quem distribui milho, à esquerda e à direita, pois não é preciso nenhum estudo para chegar à conclusão de que aquela casa sofria de super população felina! Mas no meio dos mimos dela e das exigências que vinham de todas as direcções de mais mimo redobrado, a Ana não parava de pensar em “Sua Alteza”.
Autor: Gary Patterson

Pusera-lhe esse nome porque para além de todos os minhaufas terem indubitavelmente algo de nobre, aquele sobressaía pela majestade e serenidade que sempre apresentava, como se fosse uma 2ª camada, indissociável do pêlo.

“Sua Alteza” partira. Chegara com data marcada de partida, apenas não informara quando, mas Ana sabia-o e respeitando o mistério com que o felino evitava tocar no assunto, respeitou e aguardou em silêncio, que este, chegada a altura, desse ordens nesse sentido, a fim de ela providenciar os preparativos para a sua partida, que como nobre que era, exigia que fossem à sua altura.

Dia após dia, ela olhava-o nos olhos e sempre radiante confirmava, a cada um que passava, que ainda não era naquele dia que “Sua Alteza” a deixaria. Mas, fatalmente, chegou o dia, e ele naquela linguagem que só os felinos falam e só os amantes dos mesmos entendem, disse-lhe: “Chegou a hora, boa amiga! Tenho de partir”.

Ana ficou de rastos, afinal fora buscá-lo e amara-o, na insensata esperança de o fazer mudar de ideias e de conseguir convencê-lo a ficar por muitos e muitos anos, mas ele de nobre estirpe, tinha o seu carácter e, chegada a hora, partiu.

Autor: Gary Patterson

Não lhe saía da ideia a partida de “Sua Alteza”, Apesar de, solidários, todos os outros minhaufas juntos fazerem o possível por entretê-la, pedindo-lhe constantemente mimos, a fim de a entreterem. Mas, no fundo dos olhos da Ana, a tristeza pousava como um líquido, que brotando do coração, a qualquer momento ameaçava derramar lágrimas.

“Vou-me deitar, ninos” - as palavras mágicas foram pronunciadas e o séquito de 4 patas, seguiu a rainha em direcção ao quarto. E assim, num trono de pelos e patas e bigodes, Ana encostou a cabeça na almofada e esvaziando a cabeça de pensamentos, deixou-se embalar naquele ron-ron morno e aconchegante.

Devem ter passado poucos minutos quando lhe pareceu que um deles espirrara. Andava preocupada com aquela funguisse, e sentando-se na cama para ver se tudo estava bem, reparou que estava sentada em algo muito macio. Era macio e fofo, mas o raio da pêra do candeeiro nunca estava à mão para acender a luz, e de tanto se esticar, tombou, ficando deitada de lado. Os olhos mais próximos da superfície distinguiam partículas, diminutas, sibilantes, que brilhavam, aqui e ali, e acolá para logo, logo desaparecerem e aparecem noutro ponto. Era como que um plasma leitoso e brilhante. Hirta, sentou-se e começou a tentar fazer os olhos adaptarem-se à escuridão. Raios para o candeeiro! E à medida que os olhos se foram habituando à luz começou a distinguir pontos de luz no tecto, um aqui ou além…Piada, pareciam mesmo estrelas! Estrelas?! Ai, eram mesmo! E agora, vendo melhor, aquela coisa brilhante, fofa e macia parecia mesmo uma nuvem.

Pera lá…que estão os meus minhaufas todos a dormir a monte naquela nuvem ali mesmo ao lado?

Não! Será que acontecera algo que não se recordava? Será que… e os ninos todinhos também?

Com estas histórias de fugas de gás…nãaa! Mas realmente assim, desprevenida, sentada em cima duma nuvem, não lhe ocorria uma explicação melhor para a situação.

Autor: Sally Logue - Pet Portraits

“Hehehehehe”-ouviu ela, riso quente e morno. Olhou, mas nada. Agarrada à borda da nuvem, espreitou para baixo, mas nada… só nuvens e estrelas, brilhando naquele imenso veludo negro. “Heheheheh, psiuuu! Aqui em cima, Ana!” E ela, lentamente, com medo do que iria descobrir, pois ultimamente não ia muito à missa e também não fizera lá grandes elogios ao Sr. Padre quando ele estacionou naquele lugar de parque que ela esperara durante meia hora, acabou por espreitar.

Bom, Deus não era, a não ser que os homens estivessem enganados e Ele não tivesse feito Adão e Eva à sua semelhança, mas sim o gato deles! É que... não, sim! Tratava-se de um gato todo creme, de focinho castanho e grandes bigodes. Ok, ela sempre pensara que os minhaufas tinham direito a um Ser Supremo no céu, mas falante?

“Hehehehhe, és a Ana, não és? Eu sou o Simão. Sim, o Simão da tua comadre. Estás espantada por eu ser tão belo ou por ouvires o que eu estou a dizer? È que como sabes eu não falo, mas tu pertences àquele tipo de pessoa especial que possui umas antenas que ouvem o que nós felinos dizemos. Na terra ouve-se baixinho, aqui, ouve-se melhor.

“Ah?” - era tudo o que a boquiaberta Ana conseguia dizer. “Sim, sou o Simão. Já ando por aqui há uns tempos, mas isso tu já sabes, né? A tua comadre não é má pessoa, mas quanto a receber uma má noticia, não é bem o forte dela. E então, como parti preocupado com ela, todas as noites, penduro-me de cabeça para baixo e tento ouvir o que ela me diz, porque ela acredita e sabe, que eu a ouço todas as noites. Gosto muito dela e do marido, o Migas, mas durante o dia está fora de questão. Sempre fui noctívago e digamos que o meu melhor vem durante a noite. Eu vi quem tu eras, quando ela foi buscar os meus irmãos e eu vi como tu a fizeste feliz e lhe deste apoio, e por isso hoje chamei-te.”

“Ah?” - respondeu a monocórdica Ana.

“Sim, chamei-te para te mostrar o meu agradecimento. Mas, antes de mais, fecha a boca e ouve. Ok, desculpa lá, mas estavas a meter-me impressão, parecias uma faneca fora de água. Bem, então antes de mais nada, estás confortável? A nuvem é confortável? Tens sorte, que essa é a nuvem VIP. Tem sistema de circulação de aquecimento, caso contrário ias passar frìinho com essa camisinha de noite… heheh. Espertos somos nós que andamos sempre com o mesmo pêlo, mas enfim… alguém entenda os humanos, se nem eles próprios se entendem. Bem, prosseguindo, recebi hoje uma visita que me falou de ti e que me confessou que tivera muita pena de não poder, ao menos uma vez, falar contigo. Aí, pensei que uma vez que eu andava a adiar o ter de te agradecer o que fizeste pela Vanda e pelo Migas, aproveitava e concedia o desejo de boas-vindas ao nosso recém-chegado. Fecha a boca, 'tás outra vez a fazer figura triste, Ana. Ok, tapa os olhos. Vá lá, faz o que eu te digo. Isso, vá, 1, 2 e… podes abrir!”

Autor: Gary Patterson

E lá estava, majestoso, belo e imponente, Sua Alteza! “Olá, Ana. Não chores! Vá…a mim também me custou muito partir, mas todas as noites, farei como o Simão e todos os gatos que partiram de ao pé dos seus donos, e empoleirar-me-ei na minha nuvem para me certificar que tu e os meus manos estão bem. E podes conversar comigo pois eu vou estar sempre à escuta. Mas há algo mais que te vou contar: Quando chover fecha os olhos e pensa em nós, porque somos nós cá em cima que a fazemos!” Ao ouvir isto Ana, abanou a cabeça e trocista, fez um esgar acompanhado de um olhar de canto do olho. “Duvidas!? Hehehehehe, ingénua! Que pensas tu? Que a chuva é mesmo tal pluviosidade, com tal percentagem de humidade e umas frentes frias, como dizem os da meteorologia? Pensa, quantas vezes acertam eles no tempo? Prevêem chuva, faz sol e vice-versa! Achas que senão acertam numa para a caixa no tempo, conseguem acertar no que diz respeito à chuva?”

Ana, sempre calada, emitiu um “humpf” confirmativo, acompanhado por um conformado encolher de ombros, mas ficou-se, tentando perceber como morrera, fora para o céu, mas pior! Como ia agora receber o reembolso do IRS? E aquela conta da água que ia pagar na 3ª feira, depois da preguiça ter adiado vezes sem conta? Mas agora também já não precisava de água, isso era certo…

“Como te dizia, somos nós que a fazemos e vou-te dizer como: quando um de nós parte de ao pé dos donos, ganha aqui uma nuvem e todos nós que partimos antes, estamos cá para o receber. A alegria é tanta de revermos um irmão felino, que começamos a apertar a nossa nuvem com as unhas, de tanto contentamento e pimbas! furinho aqui e outro ali, todas as nuvens juntas dá a chuva! Acredita quando cá chegamos estamos tristes porque deixamos os nossos papás mas dormimos em nuvens fofas, brincamos nas estrelas e como diz a atolambada da tua comadre, temos a lua por arranhador. Ela não é muito certinha, mas por vezes acerta, vá lá! Que mais podemos desejar? Vemos os que nos são mais queridos sempre que queremos, ouvimo-los e sempre que queremos abraçá-los, basta com o nosso contentamento espremermos um pouco a nossa nuvem, como fazíamos antes com os sofás das nossas casas, e como um banho de carinho enviamos a chuva! Aham, Ana, desculpa tocar no assunto, mas o Simão tem razão, fecha a boca que ficas com um ar muito estranho assim. Obrigada.

Autor: Gary Patterson

Só te queria dizer uma coisa mais: Fui muito feliz contigo. O amor não tem tempo de duração e, em 10 dias, tive muito mais que muitos irmãos meus recebem uma vida inteira.” E saltando para a nuvem dela ela viu que ele era muito maior agora, maior que ela mesmo, mas a nuvem apesar de oscilar, aguentava “Anda cá, doce Ana! Deixa ser eu, por uma vez, a dar-te miminho…”

E sentindo as patas à volta dela, Ana deixou cair, ao som do ron-ron morno e rouco, toda a tristeza depositada no fundo da alma. Uma a uma, as lágrimas caiam, misturando-se no pelo do peito de Sua Alteza, mas ela só queria mergulhar a cara naquele pelo macio e deixar-se envolver pelo ron-ron-ron… De repente, a dificuldade em respirar obrigou-a a afastar a cara, mas… estava tudo tão escuro! As estrelas já não brilhavam, a nuvem já não cintilava, apenas o ron-ron se ouvia, mas mais suave e distante. Apalpou e voltou a apalpar… tentou recordar e à mente vieram-lhe farrapos de imagens com gatos e estrelas, Sua Alteza e chuva… Ora, disparates! Andara todo o dia obcecada pela ideia da partida de Sua Alteza e acabara sonhando. Deu com a pêra, acendeu a luz. Os minhaufas faziam um berço em redor dela, e ela apagando a luz deixou-se adormecer imaginando que ainda estava encostada naquele peito enorme e macio.

No dia seguinte, lentamente, um a um, os minhaufas acordaram, o berço desmoronou-se e a rotina voltou. Caixotes para limpar, remédios para dar, rações para distribuir, mas a ausência de Sua Alteza apertava-lhe o coração e Ana não tinha vontade de nada. Resolveu sair, dar uma volta, arejar, talvez tomar um café….Quando apenas tinha dado 3 passos, começou a chover e inexplicavelmente ela virou a cara para a chuva e sorriu. Pela primeira vez, sem saber porquê, lembrou-se de Sua Alteza e sentiu-se feliz.




Autoria: Vanda Santos



- Filipa Bastos (Filipa Bastos) [ Europe/Lisbon ] 2004/03/26 00:10

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